segunda-feira, 25 de abril de 2011

Há 37 anos (*)

(*os subtítulos são links para o original)


Dormíamos quando o telefone tocou.
Estava ainda escuro. Tínhamo-nos deitado tarde e pensávamos fazer uma pequena viagem nesse dia pelo que a primeira ideia quando ouvi a voz da minha sogra era que seria qualquer recomendação, porque ela era muito «sogra galinha» e demasiado protectora. Contudo o ‘recado’ era bem diferente: «Liguem o rádio. Depressa! Passa-se qualquer coisa de grave, tenham juízo e não se atrevam a sair de casa!»
Ligámos de imediato o rádio e realmente algo de estranho se passava. Dava apenas música, sem qualquer intervenção do locutor habitual, e a música era exclusivamente marchas militares. Eu tinha 25 anos, o João 26, casados há poucos meses, unidos por muito afecto e idêntica visão do mundo e da sociedade. Olhámos um para o outro. O coração bate forte quando ouvimos «Aqui Posto de Comando das Forças Armadas». Pensámos em Kaulza…Seria uma viragem à extrema-direita?... Coisa tenebrosa de imaginar mas o «golpe das Caldas» tinha falhado há pouco tempo…
Arranjámo-nos e vestimo-nos num ápice. Ficar em casa?! Nunca. É certo que era essa a recomendação do tal «posto de comando» e da nossa 'mãezinha' mas isso era completamente impossível. Tínhamos que saber o que se passava, mas tendo vivido toda a vida com as maiores cautelas não nos atrevíamos a telefonar aos nossos amigos, sabíamos bem que os telefones podiam estar em escuta e não era seguro.
Saímos com o nascer do sol e nervosíssimos. Adeus viagem, queremos lá saber, isto é muito mais importante. Pouca gente na rua, tudo parecia calmo. Demos uma voltinha de carro e olhámos um para o outro com a mesma ideia: Vamos à Baixa!
Chegamos ao Rossio, vemos os tanques, o coração parece um tambor a querer rebentar-me o peito. Ouve-se conversas e começamos a acreditar que não é um golpe de direita, então…? Será?...
Passa-se palavra de que o Carmo está cheio de gente, querermos ir para lá e já nem conseguimos passar. Subimos a Rua Garrett, vemos gente a rir, falamos uns com os outros, de repente esquece-se a cautela, esquece-se a PIDE. O tempo passa, são já 9, 10, 11 da manhã, agarramos cravos vermelhos que as vendedeiras de flores do Rossio oferecem.
Vivemos um sonho, ou o acordar de um longo pesadelo!




Eu era miúdo. Dez anos acabados de fazer. Tinha ido como de costume para a Escola mas via-se que alguma coisa se passava, os professores estavam esquisitos só a falar uns com os outros e não vinham para as aulas. Alguém fala em Revolução e não era a brincar. Os professores discutiam, uns achavam que se devia dar as aulas como de costume, outros que era mandar os alunos para casa. Eu via bem a discordância, uns radiantes, outros muito preocupados.
Mas a meio da manhã foram os pais que começaram a aparecer a ‘recolher’ os filhos, era mesmo uma Revolução! Eu nunca tinha visto tanto nervosismo. Os meus pais pareciam outros, eles que são – eram! – calmíssimos, estavam numa pilha de nervos.
Meteram-me no carro e vão a casa dos meus avós contar as notícias. Ainda têm algum receio de falar ao telefone e é mais seguro ir lá a casa ver como estão. Na estrada, no caminho da marginal, passamos por um sítio onde de avista o Forte de Caxias e o meu pai às tantas grita “Que se lixe, quero lá saber!” e buzina vigorosamente. Outros carros passam por nós e também começam a buzinar; um deles buzina de um modo especial, os meus pais explicam-me que aquilo é «morse». A minha mãe chorava de emoção e repetia-me para nunca esquecer aquele dia, o fascismo estava a cair. Sentia-me contagiado com aquela excitação, e ainda por cima não tinha tido escola!
Lembro-me que os meus avós, que tinham mais de 60 anos, não queriam acreditar. Eu sabia que eles sempre tinham sido de esquerda e combateram com todas as forças o salazarismo. O avô esteve preso muitas vezes. A conversa é entre a incredulidade e o riso, percebo que se está a viver um momento sem par. O meu avô quer vir logo para Lisboa, e querem deixa-me ali com a avó, coisa que não me agrada, perdia a festa!
Almoçamos a correr, parece que estamos nas nuvens. Oiço nomes: Marcelo, Tomás, Spínola. Mas onde está o governo, o que é que ele faz? Prendem-no? Julgam-no? E a PIDE? Vão prender os Pides?
Vimos todos para Lisboa depois do almoço. No rádio do carro ouvimos que o forte de Peniche foi libertado.
Todos gritam: Desta vez foi! Esta é a prova!




A minha avó morreu há pouco, com 80 e tal anos. Tinha uns 55 anos quando foi o 25 de Abril, eu ainda não tinha nascido. É engraçado porque ao ouvir o que ela me contava desse tempo e o que contavam os meus pais, até parecia que se estava a falar de países diferentes.
O meu avô, que já tinha morrido, era um legionário e a minha avó estava perfeitamente integrada na sociedade de então, o tal Estado Novo. Considerava que tudo estava bem e, para ela, a minha mãe tinha sido ‘desviada’ do caminho certo pelo meu pai, que ela olhava como um perigoso revolucionário.
Nesse dia, ela só soube que havia alguma coisa de errado pela criada que lhe veio dizer que na praça se falava em revolução. Ligou o rádio e as notícias deixaram-na assustadíssima. Telefonou a várias amigas que ainda a assustaram mais, falavam em fugir, ir para as suas casas de campo, que os revolucionários iam matar toda a gente. Rezou a Nossa Senhora, fez promessas, a meio da tarde estava aterrada sem saber o que fazer.
Foi quando chegaram os meus pais com a minha irmã pequenina, todos bem dispostos, para lhe dar um beijo. Pôs aos gritos:
“ - Que é que fazem aqui!!! Vão já para casa! E ainda por cima com a menina, desgraçados, inconscientes! Olhem que corre sangue nas ruas…”
“ - Oh mãe, ponha-se calma! Quem é que lhe disse essa?!”
“ – É que vêm aí os comunistas e matam toda a gente! É uma revolução!”
“ - Pois é, é uma revolução mas não morreu ninguém. Correu tudo muito bem” Começou por não acreditar. Aquilo eram “coisas do genro” com certeza. Contudo a calma com que ele falava, deu-lhe alguma tranquilidade. Se calhar as coisas não estariam assim tão mal como ela receia.
Desconfiada voltou a ligar a televisão depois deles saírem. Que esquisito. Está tudo a passar-se ao contrário do que pensava. E… enfim, se calhar agora o seu sobrinho já não ia para a guerra, o que a andava a ralar muito.
Contudo a minha avó resmungou o resto da vida, e eu gostava dela mas era um pouco irritante estar sempre ‘do contra’, sempre à procura do que estava mal.
Só que, naquela tarde, teve de reconhecer que as coisas não foram como ela receava.


Nessa altura eu tinha quase 16 anos.
Já tinha experimentado as dificuldades de formar uma Associação de Estudantes no meu liceu. Tinha lido muitos livros emprestados, discutia noites inteiras com os meus amigos, era uma bomba de emoções prestes a rebentar. Sentia-me revoltadíssimo com a situação do país e assustado com a perspectiva de ir para a guerra.
Aquele dia foi um sonho para mim. Desde manhã que andava na rua com o grupo dos meus amigos e amigas. Éramos muito novos, mas loucamente entusiasmados. Íamos encontrando outros grupos, de malta do cineclube, do club de jazz, da pró dos liceus, e íamos engrossando o grupo que já era enorme. Trepávamos aos Chaimites, que dantes nos metiam medo por significar guerra e morte, e agora nos traziam a paz. Estava tudo enfeitado de cravos vermelhos, um acaso que se tornou um símbolo.
Vivam os cravos! Viva o MFA! Viva a Vida! Viva a Liberdade!
Gritávamos palavras de ordem que se inventavam na altura, e recuperámos «o povo unido jamais será vencido» do Chile, o pobre Chile, na altura sob a pata de Pinochet. E a emoção de comprar jornais que traziam na primeira página: «Este jornal não foi visado por nenhuma comissão de censura». !
Claro que não havia telemóveis na altura, portanto para falar para casa andávamos a juntar moedas para ir a uma cabine. A minha mãe queria-me em casa, mas eu desobedecia: «Oh mãe!!! Hoje, que caiu o fascismo?! Hoje não me acontece na-da!!!» A minha namorada não conseguiu falar da cabine mas falou do telefone de uma loja, porque naquele dia todos facilitavam, todos estavam solidários. Nunca se viu coisa assim!
Finalmente ‘desmobilizámos’ para jantar, também tínhamos fome.
Mas combinámos dar a volta aos pais e encontrarmo-nos depois do jantar. Havia tanto que discutir, que saber, que planear… Sabíamos que a vida estava verdadeiramente a começar.


Onde estavas na noite do 25 de Abril?

Chegámos à noite a casa, eu e a Marta, completamente extenuados. Cansadíssimos os dois, e ainda debaixo de choque. Ainda nos custava acreditar. Na nossa vida tinha ficado para trás muitos anos de luta activa, desde a “crise académica de 62”, onde nos conhecemos e começámos a namorar. Dessa época ficou a «greve de fome» feita na Cantina, a prisão em Caxias. Qualquer de nós tinha conhecido como era uma cadeia por dentro…
A nossa vida tinha sido muito difícil até então. Sempre que nos candidatávamos a um emprego, apesar de licenciados, a má informação da Pide tinha-nos bloqueado as hipóteses de um trabalho de jeito. Aquele dia foi vivido como um sonho. Voltámos a casa estoirados, cansadíssimos, e fomos enfiar a nossa filhota na cama, que também ela se sentia contagiada pelo ambiente de excitação.
Mas a porta ia ficando aberta para os muitos amigos que iam aparecendo. E foram imensos os que se juntaram na nossa casa, onde improvisámos um 'jantar' - havia pão, ovos, queijo, chouriço, vinho e cerveja, não era preciso mais! Cada qual que chega trás notícias, boatos, nem se sabe bem o que é a verdade e o que são os nossos desejos… - Eh malta!! Shee!!!!Tudo calado, vão dar as notícias na TV!!
De súbito aparecem as imagens da Junta de Salvação Nacional . Ai!O quêêê??? Desaparecem os sorrisos, passa um arrepio, um momento de susto. Spínola, Galvão de Melo, Pinheiro de Azevedo, Silvério Marques e Rosa Coutinho. Ali, até mesmo o Rosa Coutinho parecia ter má cara! Naquela sala tão animada e feliz sentimos passar uma aragem fria… Foi a primeira desilusão do dia, mas em breve ultrapassada. O Zé Pedro, optimista, acha que aquelas imagens são necessárias para tranquilizar as pessoas mais assustadiças. “Vamos animar, malta, olhem que quem controla o Movimento não são ‘estes’!” e de novo o tom das conversas sobe, planos, sonhos, enchem de entusiasmo o nosso grupo, igual a muitos outros espalhados àquela hora por todo o país.
Ninguém tinha sono, quem conseguia dormir na noite de num dia assim?...



Pé-de-Cereja

4 comentários:

Zorro disse...

Nunca é demais! Já tinha lido estes textos os outros anos mas soube-me muito bem reler. E aconselho quem venha aqui que clique nos links porque no «original» tens outros links muitos giros que aqui desaparecem. E fotos. Vão lá!

fj disse...

(N)ossa s(S)enhora (escolham asmaiusculas ou minusculas conforme as crenças ) foi invocada. Parece ter falhado ( ?ou não, uma vez que tudo leva a julgar que não concorda com as recentes declarações de Otelo Saraiva de Carvalho ?)que estaria E(e)la a fazer no 25 de Abril? Confusão com Maio,28?HHHMMM...

Hipatia disse...

Acho que foi a Cristina do Contra-Capa que, há uns tempos largos, me convidou a escrever um post sobre o dia 24 de Abril de 74. E eu, demasiado novinha na altura, não sei o que poderia ter feito, para além do habitual. Do dia 25, só lembro que não dava os desenhos animados que queria ver. Fracas memórias para um dia que merecia ser sempre lembrado!

cereja disse...

Olá Hipatia :D
Pois é. Eu percorri aqui muitas idades mas mesmo no caso do miúdo de 10 anos (tu se calhar tinhas ainda menos...) coloquei-o numa família muito participativa. Com certeza que houve milhares de outros que apenas ficavam espantados. Afinal, o testemunho que deixei acabou por ser o meu como se tivesse entrado na cabeça de várias pessoas diferentes...