Como qualquer educador dirá, Brincar é uma Coisa Séria.
No último século tem havido uma reviravolta notável na forma como o adulto encara o acto de brincar de uma criança. Se é um facto que sempre se encarou como normal uma criança gostar de brincar, há cem ou duzentos anos não se via tal como sendo um treino que a natureza oferece às capacidades de um futuro adulto tal como a qualquer filhote de animal. Quando a criança brinca, imita ao seu modo o que vê fazer aos adultos que conhece e vai treinando as suas capacidades de crescer.
E assim, como o modo de vida dos povos tem evoluído é normal que a forma de brincar das crianças também evolua. O interessante é a sua rapidez e como tudo se desactualiza apesar de permanecer ainda uns tempos 'desfazado' (brincava-se ainda com cavalos de pau e jogava-se à espada quando já ninguém andava a cavalo nem havia duelos...)
Vem isto a propósito por dois motivos.
Há poucos dias conversei com uma menina dos seus 8 ou 9 anos. Queixava-se imenso dos fins-de-semana, porque não tinha com quem brincar e apesar de ter sacos cheios de brinquedos, estava farta deles, não tinham graça nenhuma. E os pais (separados) raramente a levavam onde ela queria por serem sítios muito caros. «Olha ontem, por exemplo, disserem que ia ser muito bom e afinal só me compraram este colarzinho» (???)
Nestas coisas é inevitável revivermos a nossa experiência. Como filha única e sem primos, eu sempre brinquei sozinha. Claro que quando aparecia uma amiga era uma festa, mas no dia-a-dia achava natural entreter-me sozinha. Brincadeiras-de-menina: tratava da boneca, e aprendia a costurar vestidos para ela, fazia jantarinhos numa panela pequenina, e ia copiando a lida doméstica das mulheres lá de casa. Ou alinhava cadeiras e bonecos e fazia de professora na escola. Mexia-me muito, saltava à corda, andava a pé-cochinho e fazia equilíbrios vários, sem precisar de brinquedos. Também tinha uma caixinha de costura (uma prenda de Natal) e sabia os rudimentos de costura que praticava. E, com a idade dela já lia imenso, ocupação que não precisa companhia.
Claro que não pretendo que se volte ao passado. Mas chocou-me o contraste entre a infelicidade da S**** e a satisfação com que eu brincava "a poder de imaginação". E considero que as minhas brincadeiras me treinaram a ser autónoma em casa, e percebi que a S**** não estava a ser preparada para isso, muito pelo contrário. E acho que há um erro por aí porque afinal brincar não está a cumprir a sua função biológica.
Nesta linha de pensamento parece-me que muitos brinquedos actuais não deixam lá muito à imaginação! Porque até é verdade que se brinca muito sozinho, lá isso é - playstations e quejandas - há crianças que passam tardes agarradas a máquinas, mas está lá tudo programado. Máquinas. Se calhar vai ser esse o seu futuro. A mim parece-me triste.
E, o outro motivo que me levou a escrever foi ter lido há pouco sobre uma boneca impressionante para mim. Eu sei que hoje não se fazem vestidinhos de bonecas, compram-se. E os apetrechos para brincar com elas também não se imaginam nem improvisam, também se compram em miniaturas impecáveis. Mas não imaginei (afinal falhanço da minha imaginação) que se vendessem bonecas-iguais-às-donas. Afinal até isso já está feito - para quê imaginar...
Pé-de-Cereja