sábado, 20 de novembro de 2010

Recordações

O post que está mesmo por baixo deste, e tem o título lacónico de Pão, com grande surpresa minha teve muitos comentários, na esmagadora maioria aplaudindo a minha reclamação. E a Saltapocinhas deu-me um conselho inteligente: porque não comprar uma dessas máquinas que fazem pão? E é coisa para se pensar, minha amiga, vou saber melhor como é isso. Contudo faz-me um pouco de impressão, é como a Bimby, é excelente sem dúvida mas para quem aprecia cozinhar tira-lhe a piada toda!
E esta coisa do Pão tem os seus «quês»...
Uma das mais agradáveis recordações da minha infância mais remota, está associada ao fabrico caseiro de pão.
Quando era pequenita, tinha umas férias enoooormes, bem maiores do que a dos meus pais, e portanto era costume «despacharem-me» para junto de alguns familiares, e sobretudo para a família paterna que continuava a viver no Alentejo. Era sempre um mês magnífico esse, com muita liberdade, podia ir para qualquer lado que nem me perdia nem era atropelada por nenhum carro pois os que lá via eram puxados por animais apropriados que não andavam a grande velocidades. Creio que eram mulas - nem burro nem cavalo.
Ora uma vez por semana fazia-se o pão.
Eu dormia no mesmo quarto que uma prima muito afastada, a responsável por essa tarefa, que obrigava a acordar cedíssimo. Ela não me queria acordar mas já a cerimónia de riscar um fósforo para acender o candeeiro de petróleo era o suficiente para me deixar alerta. Saltava da cama, e insistia em a acompanhar.
O alguidar de barro onde se amassava o pão era enorme, pelo menos aos meus olhos. Já lá tinha a farinha peneirada, e a Zefinha deitava-lhe água e sal e creio que fermento. Depois de mangas arregaçadas e mãos e braços bem lavados, desatava aos murros aquela massa. Era uma cena fantástica para os meus olhos de citadina. Era necessário muita força, eu pedia para experimentar, dar também um murro na massa, mas nem passava da superfície...! E demorava bastante tempo até adquirir a consistência que devia. Ela depois fazia uma cruz no meio da massa e tapava tudo com uns panos, como se a agasalhasse.
O forno ficava num patiozinho, já fora de casa, e estava aceso (não sei quem erra encarregado de o acender, mas a prima Zefinha ia lá espevitar as brasas.
Esperava-se bastante. Para a minha impaciência esta era a parte mais chata porque se esperava parecia-me que imenso! A família começava a levantar-se, eu ia arranjar-me como deve ser, tomava-se um pequeno almoço, e depois lá se ia espreitar por debaixo dos panos o que estava no alguidar. Eu nunca deixava de me espantar por mil vezes que visse, como agora o alguidar estava cheio!!! De metade cheio, antes de levedar, agora chegava quase às bordas... E cheirava um cheiro especialíssimo, aquela massa.
Depois formavam-se os pães (nessa altura já havia mais quem ajudasse) sobre-compridos com uma espécie de cabeça num lado e ia-se colocando cada um numa pá de madeira com um cabo muito comprido, e metia-se um a um no forno. Enquanto coziam o cheiro fazia-nos água na boca! Mas ainda demoravam a cozer, não era brincadeira. Depois quando estavam prontos mandava-se sempre para casa dos outros membros da família um desses acabados de fazer. Como a família era grande, cada um cozia em dias diferentes da semana e portanto havia sempre um pão 'fresco' e pão mais seco para as açordas e migas.
Eu sei. Tudo isto só é possível numa sociedade rural e há muitos anos. Mas este ritual do amassar do pão nunca o vou esquecer, e nem preciso de fazer grande esforço para lhe sentir o cheiro!


Pé de Cereja

3 comentários:

josé palmeiro disse...

Pé de Cereja, aqui está um escrito que derruba de vez a "máquina" da Saltapocinhas.
Que descrição mais perfeita, estava a lê-la e a recordar todos esses passos que, com o correr dos tempos tem vindo a desaparecer e a desumanizar-se. Aqui recordo uma outra realidade que existia no Alentejo que eram os fornos comunais, pois se não havia dinheiro para cada um ter o seu forno, havia UM para TODOS.
Deixa-me só acrescentar exatamente o que mais te aborrecia o forno. Era aquecido com lenha de preferência "ESTÊVA", pois emprestava ao pão um sabor especial. Depois de bem ardido, o borralho era retirado para um recipiente e daí se recuperava o combustível essencial para as braseiras de inverno, o "PICÃO". Mas dizia eu que , o borralho era retirado e depois com uma espécie de esfergona, de cabo muito comprido, era limpo todo o recinto de cozedura. Só então o pão era lá colocado para cozer.
Já agora, o pão que na passada Quarta-feira, comprei em Estremoz, ainda hoje o comi a acompanhar o almoço , não foi em sopas!!!

cereja disse...

Caro amigo, só mesmo tu para teres paciência para vir comentar um texto tão 'pessoal' e a um fim de semana. É das tais coisas - escrevi-o porque .... me apeteceu, num encadeado de ideias e recordações.
Mas muitas dezenas de anos depois, embora muito menos humanizado, essa coisa da «máquina» é capaz de, pelo menos, nos fazer sair o pão mais barato (menos caro?)
Um abraço

Filipe Paixão disse...

é exactamente assim que a minha mae e as pessoas que conheço, fazem o pão, na Madeira, de onde sou! tinha ideia que no Alentejo faziam como nós, mas cada pormenor seu é uma recordação para mim também :)