segunda-feira, 1 de agosto de 2011

O meu tipo inesquecível

Chamava-se assim uma secção de uma revista que via lá por casa, era eu miúda. Chamava-se "Selecções do Reader's Digest" (chamava-se e ainda se chama apesar de nunca mais ter lido nenhuma). Aliás é estranho esta recordação porque os meus pais não eram pessoas para comprar esse tipo de revista. Seja como for lembro-me bem de «Meu tipo inesquecível» e, é curioso, que essa expressão ainda me ocorre quando quero caracterizar alguém um pouco diferente.
Hoje apetece-me falar de uma pessoa a quem já me referi aqui várias vezes como «fada do lar». Trabalha na minha casa há uns 20 anos. Trabalhou, quero eu dizer. Foi agora de férias e já não volta. Tinha um outro emprego mais seguro do que simples mulher-a-dias, e esse passou a exigir-lhe exclusividade.
Quando há uns 2 meses ela, quase a chorar, me deu a notícia fiquei abalada. Durante estes 20 anos vi a filha-criança crescer, casar, nascer uma neta que também já está crescidinha. E ela também tem acompanhado a minha vida de perto, sabe mais de mim do que algumas amigas...
Demo-nos sempre bem, como gente educada devo dizer. Nem sempre ela estava de acordo com algumas decisões minhas e sorrateiramente lá conseguia levar a dela avante, assim como eu também me irritava com algumas teimosias da F. que conseguia ser casmurra até mais não. Mas éramos amigas.
Gostava muito de conversar. Sempre que me encontrava em casa eu ficava a par das suas histórias familiares com grande cópia de pormenores, das vidas das colegas, punha-me a par das últimas fofocas que tinha ouvido na tv. Reconheço que muitas vezes nem a ouvia bem, mas sentia que ela ficava muito aliviada com aqueles desabafos. E eu até me sentia lisonjeada em parte, afinal era consideração por mim pois até os extractos do banco me vinha mostrar e pedir conselho!
Meia analfabeta, começou a trabalhar quase criança nem tendo completado a 3ª classe, mas um espírito vivo, sabia o suficiente para uma vida activa e desembaraçada. Lia as sms que lhe enviavam mas para responder pedia-me ajuda que aquilo já eram cavalgadas mais exigentes. Profundamente prestável, até era errado pedir-lhe um favor, que por mais transtorno que lhe fizesse ela fazia-o de certeza.

No último dia, decidimos de comum acordo, não nos despedirmos; fiz a contas, dei-lhe uma lembrança e combinámos que ao sair ela deixaria as chaves à vista e fechava a porta. Quando regressei tinha a casa cheia de flores o que me enterneceu mas não espantou, mas fiquei com um nó na garganta - sabendo bem que ela não escrevia - quando encontrei um papelito. Numa letra muito esforçada que se lia com dificuldade e muitos erros ela deixava os seus agradecimentos, a sua saudade e o seu desgosto. Isso sim, foi muito comovente.

Ainda não aceitei bem que não a vou ter agora por cá. Dou por mim a pensar «a F. vai achar graça a isto», e ainda há pouco saiu-me «tenho de mostrar isto à F.»
Vou sentir muito a sua falta.
Que a sua opção resulte bem são os meus desejos mais sinceros.

Pé-de-Cereja

8 comentários:

Zorro disse...

Coisa estranha neste blog, Cereja. No Pópulo escrevias sempre 2, 3, 4 posts de cada vez, aqui tinha reparado que o ritmo era dos 3 ou 4 por semana...
Hoje vieste com o gás todo!
:)
Este está de facto cheio de ternura. Só é pena que a senhora não o venha ler...

Joaninha disse...

Já por aqui tens falado muitíssimas vezes da tua 'fada do lar'. Agora de repente não sei dizer a que propósito, mas a ideia que tinha dela, bate com aquilo que dizes hoje.
Deves ter mesmo muita pena.
Vinte anos????
É uma vida.

Mary disse...

Comovente mesmo.

Anónimo disse...

Por vezes, uma acção vale mais por mil palavras. Uma pessoa sabe quando e quanto a outra fica sensibilizada e tem sensibilidade para sentir o quanto gostam de si e apreciam os seus esforços. Neste caso a "sua" fada do lar...sabe de certeza o quanto foi apreciada... sorte a dela, e ainda bem que assim é, pois nem toda a gente pode guardar memórias gratas como essa.
Quando alguém parte seja por que motivo,restam as memórias dos bons momentos que passaram,dos bons momentos que viveram. Pena é quando não restam memórias.Afinal recordar é reviver o passado.
Calculo a emoção de ao abrir a porta encontrar a casa cheia de flores.
Pode considerar-se feliz, desculpe a ousadia, mas é sinónimo de que alguém gosta de si...
E na verdade é de pessoas assim, que se "dão", que nós sentimos a falta, pois outras existem que passam nas nossas vidas, e tendem a caprichar em não deixar marcas, pois não sabem dar nem receber.
Tenho a convicção de que este blog, é a "continuação" com outro nome de um que segui...mas entretanto se extinguiu.
Uma boa semana
nany

cereja disse...

Obrigada amigos pelos comentários e terem participado na emoção que senti.
Nany, É verdade. Tenho tido a sorte de ter encontrado empregadas que se tornam amigas. É mesmo sorte minha, porque tenho amigas que tratam muito bem as delas mas não há faísca, fica tudo um tanto formal e frio. Comigo não tem sido.
Claro que era mentira dizer que durante 20 anos foi tudo cor-de-rosa. Por vezes sentia-me irritada e impaciente com algumas teimosias. Arrumava tudo à sua maneira (ando agora a voltar a arrumar à minha maneira e a gostar assim!) ou... de qualquer modo. Preferia muitas vezes que não arrumasse nada!
Mas era a pessoa mais prestável que conheci. Não apenas comigo, com toda a gente. Oxalá seja feliz.

fj disse...

Deve ser uma pessoa excecional e essa das flores é linda

cereja disse...

As flores foi bonito mas não foi surpresa. Não foi a primeira vez que me trouxe uma prenda dessas. Mas a «cartinha» com aqueles erros e naquela letra horrível, isso deixou-me um nó na garganta. Já a guardei.
Ela é de facto uma pessoa com muitas qualidades, nunca vai ser plenamente substituída.

Anónimo disse...

Sabe, cereja? Há pessoas que são na verdade insubstituíveis, só que a maioria das pessoas é que não o percebem...