sexta-feira, 20 de junho de 2014

Desumanidade

Tem sido notícia nos últimos dias: há empresas que ao para contratar trabalhadoras lhes pedem o compromisso (assinado?!) de que  não devem engravidar durante 5 ou mais anos.
É imoral? Sem dúvida. É ilegal? Também, felizmente. Mas fazem-no? Acredito sinceramente que sim. Tal como acredito que guardem essa declaração muito bem guardada, e as trabalhadoras que aceitaram não fiquem com nenhum documento que possa fazer prova desse intolerável abuso. Algo que faz parte da vida íntima de cada um de nós ser discutido e analisado na frieza de uma entrevista com alguém que se vê pela primeira vez numa relação de autoridade?... 
Pois não me admira nada. Nada! Fui testemunha de uma história desse tipo, que nunca mais esqueci.
Há uns 10 anos ou mais, trabalhava eu num sector da função pública e certa manhã ao chegar ao trabalho muito cedo encontro uma das secretárias desse serviço a cochichar com outra, ela com uma expressão muito preocupada enquanto a outra parecia sorridente. A primeira mudou de cara quando me aproximei e respondeu àquilo que eu ia perguntar, mas a expressão que tinha visto deixou-me perplexa. Assim  que a encontrei sozinha perguntei-lhe o que a estava a preocupar. Creio que eu tinha boa fama porque ela ainda hesitou um pouco mas confidenciou-me insistindo que era segredo 
"- Estou grávida!" Sorri e perguntei se estava contente ou...? 
"- Estou! Eu e o Zé estamos radiantes!"
"- Óptimo, respondi eu, dê-me um beijinho, muitos parabéns!
Mas como ela continuava com uma expressão pouco clara, insisti 
"- Mas o que se passa?"
"- É que estou cheia de medo. Não sei como é que vou dizer à Dra Irene quando ela chegar... "
"- Como é que vai dizer???! Mas porquê?" e responde-me com os olhos cheios de lágrimas:
"- Quando vim para aqui ela perguntou-me se eu tinha filhos e avisou-me logo que não podia engravidar."
Eu sei que fiquei gelada! Respondi a rir que a Dra Irene estava a brincar com ela, uma brincadeira de mau gosto, só podia ser, mas ela estava completamente convicta que era a sério. Não iria perder o emprego porque estava na função pública, mas pensava que seria destacada para um outro serviço muito pior. E, o que é impressionante, é que estava mesmo cheia de medo da nossa chefe. Medo a sério.
Na altura aconselhei-a a dizer simplesmente (e isto foi há bem mais de 10 anos...)
"-Bom Dia, Dra! Trago-lhe uma boa notícia: daqui a oito meses vai chegar mais um portuguezinho que irá ajudar a pagar as nossas reformas!" Ela ainda riu entre as lágrimas. O impressionante, ainda por cima, é que esta senhora criatura que tinha decidido que não queria grávidas no seu serviço, era casada e tinha filhos! Eu até os conhecia...
Note-se que isto foi muito antes da crise e num serviço público, e garanto que se passou exactamente como contei.
Ou seja, não me admiro absolutamente nada que determinadas empresas ponham como condição nos seus contratos a "infertilidade" das suas funcionárias.
Vergonha!
Vergonha!
Vergonha!
Estamos no século XXI, não é?
Não é.



Cereja

3 comentários:

Anónimo disse...

A palavra desumanidade parece certa. Não olhar para as pessoas como seres humanos mas como máquinas. As máquinas nunca param por questões desse tipo, a parvoíce da reprodução...!

Joaninha disse...

Imagino a cena. Imagino o medo da reviravolta na vida profissional. Que revolta!
Ter medo de dar uma noticia dessas????
Uma adolescente que engravide e "tenha medo" de dizer aos pais, compreende-se.
Assim como se compreende, se uma mulher engravidasse sem querer e o marido não quisesse filhos, tivesse medo de da sua reacção. Mas, com sinceridade, não os únicos casos onde entendo essa reacção.
Tudo o resto me revolta!

cereja disse...

Ups! Esqueci-me de ver se alguém tinha comentado. Desculpem anónimo e Joaninha :(
Os vossos comentários reforçam bem o que penso. A verdade é isso, as pessoas deixam de ser pessoas e passam a ser peças descartáveis de uma máquina.
Joaninha, os exemplos que dás são bem vistos. A mim sempre me revoltou que um ser humano tivesse medo de outro ser humano. Até mesmo nos casos que dizes. Contudo seriam as excepções, tens razão...