quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Cansaços

Recebi, na ante-véspera do Natal, dois telefonemas seguidos de duas amigas.
Uma delas telefonou-me quando estava a lanchar, atendi quando ainda estava a engolir e desculpei-me disso. "A lanchar? -respondeu-me ela - Olha eu ainda nem tive tempo de comer!!!" o que me fez sentir um tanto envergonhada e comilona até ela se ter queixado numa voz agressiva que estava cansadíssima por ter estado a manhã toda no Toy's R Us para comprar a prenda da neta. Bom. Reconheço que não tenho grande paciência para esse tipo de queixas. O Natal não é uma festa volante, é sempre no dia 25 de Dezembro, qual a ideia de se esperar pela véspera para as compras necessárias?!... Só me apetecia dizer "Bem-feito!!!" É, pode haver um esquecimento, um imprevisto, mas não da neta ela até me explicou que era uma prenda específica... E também não foi o caso de estar à espera de receber o ordenado para a compra. Esta minha amiga teve um início de vida difícil e duro, mas agora vive com conforto. Reforma razoável sem ser de luxo mas é só para ela, além de ter uns bons tostões em conta a prazo. Claro que ela é que sabe da sua vida, mas olhando de longe não entendo que fale tantas vezes de cansaço porque tem uma empregada que vai semanalmente deixar-lhe a casa a brilhar e explicou-me que desta vez, mesmo com uma família muito pequena, mandou assar o peru fóra, as sobremesas também vêm de fóra, em casa só faz a sopa e decora a mesa - actividade que já começou de véspera. Está a apertar o cinto sem dúvida, há uns tempos vivia bem melhor e o futuro preocupa-a como é natural mas tem uma vida muito confortável. Cansada, parece-me a mim, só por complicar o que seria simples.
Quase de seguida ligou-me-me outra amiga, a explicar porque não me tinha falado na véspera, como estava combinado. Ela tem 2 empregos durante a semana e ainda faz umas horas noutro sítio ao sábado. O marido tem uma reforma de 400 € o filho, de trinta e tal anos, vive com eles e está desempregado sem direito a subsídio. Nesse dia teve de apanhar o comboio das 8 da manhã porque a partir dessa hora greve e já não poderia ir trabalhar, e à volta esperou mais de uma hora na estação pelo fim da greve. Da estação a casa ainda é um bocado e ela vai carregada porque prefere fazer as compras num super que é um pouco mais barato apesar de mais longe. Ao chegar é a lida da casa, a que não fez de manhã, e cozinhar o jantar. O marido não mexe uma palha (não é 'de homem' essas coisas...) e o filho idem. Ela é uma pessoa com imenso carácter, inteligentíssima, sensível, mas anda demasiado cansada para se impor "aos homens" da casa que ainda consideram natural que ela se ocupe de tudo. Confidenciou-me "Ando tão cansada que nem sou capaz de ler. Pego num livro e adormeço no sofá" e muitas vezes me diz que nem quer pensar no que seria daquela família se ela desaparecesse, porque é o suporte de tudo.
Impressiona-me mais ainda porque era uma pessoa de uma enorme alegria, optimismo e boa disposição. Ainda há uma dúzia de anos era para mim uma referência de pessoa que sabia "descomplicar" a vida, tirar o melhor partido. Como é possível vê-la assim...?
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Quanto a mim estou mais ou menos no meio. Sou organizada, não me enfio num Centro Comercial na véspera de Natal, nem tenho capacidade económica de mandar vir a ceia já feita mas não preciso disso, até gosto de cozinhar. Não me cansa. E felizmente, também não preciso de trabalhar loucamente para sustentar a minha família, mesmo que tenha cortado todos os extras e alguns não-extras, até teria vergonha de me queixar de cansaço quando penso na minha amiga A**. Conclusão? Que a sociedade é o raio de uma grande mistura, que há gente boa, capaz, sensível, generosa, inteligente como as minhas duas amigas, mesmo que o contraste seja tão grande.
Gosto muito das duas.



Pé-de-Cereja
  

3 comentários:

fj disse...

Dá que pensar. Certas greves, certas reformas ( ontem o Pedro Lomba, no Público, zurzia nos reformados "mais ricos" os que recebem 1350 ou mais). Quantas vezes esta quantia receberá pela actividade profissional dele, mais as crónicas? ),Certos cansaços, manias de que não comeram ( ou dormiram ) são realmente muito irritantes. fj

cereja disse...

Pois é, FJ. Fala-se em solidariedade mas é uma bonita teoria. A verdade é que quando as coisas endurecem não se consegue ver para além do pequeno círculo da vida pessoal. Vemos isso constantemente. Esse exemplo, da censura de quem fala do alto do seu (talvez relativo) bem-estar a quem está bem abaixo de si, é de dar a volta ao estômago, mas está sempre a acontecer. E quanto a certas greves... enfim.
Lembras-te quando se dizia "a greve é a última forma de luta!" e agora até parece ser a 1ª. Este caso dos transportes que referi, é onde se vê a cegueira e egoísmo de alguns sindicatos. Tinha de haver outras formas de luta, mais criativas, simpáticas e sobretudo eficientes. Este caso só prejudica quem não deve. As empresas têm lucro com estas greves!!! Não pagam salários, não gastam combustível nem desgaste de material, e a esmagadora maioria de quem usa passe pagou o mesmo quer use o transporte quem não use...ou seja o dinheiro já lá está!

Joaninha disse...

Olha lá, este texto não estava aqui!!!!
Tenho a certeza de ter passado por cá e não o ver; que mistério... Realmente há contrastes grandes mesmo á nossa frente. Estas tuas 2 amigas que se não são assim podiam ser, mostram bem. Conheço exactamente os 2 estilos, a eterna cansada porque-sim aos nossos olhos até parece que faz tudo para se poder queixar e aquela sobre quem recai tudo e mais alguma coisa das obrigações de uma casa de família.
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Eu gostaria de me situar a meio como tu dizes que fazes, mas... acho que oscilo de uma para a outra. ;) Tenho épocas onde acho que tudo recai sobre mim e só me apetece atirar tudo ao ar, mas também há períodos onde tenho consciência de que sou é desorganizada nalgumas coisas...