domingo, 24 de novembro de 2013

A questão da Saúde

Quando li ontem a exigência orwelliana acerca do controlo de quem fuma   mais do que indignada, fiquei chocada. É uma exigência que visa certamente condicionar nalguns casos o acesso pleno à saúde, coisa que me custa compreender.

De vez em quando dá-me para explicar alguns dos meus sentimentos actuais pelo meu passado. Não sou só eu que penso assim, claro, creio que toda a gente é em parte fruto das suas experiências no início de vida. Ora a minha vida em criança baseava-se em pontos que considerava inquestionáveis. Nascida em pleno salazarismo, numa família classe média a sofrer fortemente pelo seu anti-fascismo, cresci num ambiente de grande contenção económica. Muito poucos vestidos, feitos em casa ou herdados de outras pessoas para além de andar sempre de bibe, os sapatos compravam-se no número acima para durarem mais tempo (punha-se algodão na biqueira...), comia-se bem mas só produtos de época e tudo se aproveitava, as distracções dos adultos para além da leitura, eram visitas aos amigos ou passeios a pé.  Havia um rádio, é verdade, mas sobretudo para ouvir notícias.
Mas para a Cultura, Educação ou Saúde não sentia tanto a restrição. A biblioteca lá de casa sempre foi grande, e aumentada permanentemente com ofertas de autores ou editoras, empréstimos, trocas, e algumas compras é claro. Os pais eram amigos de bons pintores e as nossas paredes eram uma mini-galeria. Tinham também amigos no teatro e iam ver muita coisa com bilhetes de oferta. Eu vivia mergulhada num ambiente de grande cultura por "culpa" das amizades dos meus pais e não percebia que aquilo se comprava...
O mesmo com a Educação. Andei sempre no ensino público, tinha a noção de que se pagava pouco por isso, os livros eram herdados de primos mais velhos que os estimavam como eu estimei, o gasto era de artigos de papelaria mas eram poucos. Nunca senti que isso fosse um peso na minha família.
E depois a Saúde. Os meus pais tinham vários amigos médicos, além de um primo direito (mas a quem se recorria pouco) e lá nas brumas de infância nem me recordo de ir a um consultório eram eles que vinham a casa... Assim como os meus pais, não ouvia entre várias queixas nenhuma sobre questões de saúde por dificuldade de acesso. Mesmo medicamentos, creio que esses amigos traziam muitas amostras mas quando era preciso ir à farmácia não recordo que fossem contas muito grandes.
E o tempo foi passando e o meu modelo a manter-se. Mesmo na adolescência e princípio da idade adulta, com essa rede-de-amigos-médicos, a resposta fácil da Saúde sempre foi um dado adquirido.
É certo que já adulta, o conhecimento do Serviço Nacional de Saúde da Inglaterra era um modelo a desejar, mas por ser nova e ter saúde não estava entre as minhas maiores preocupações.
...............
Talvez por isso o acordar para a realidade tenha sido tão complicado. O perceber que a qualidade da resposta neste campo depende do dinheiro que se tem, foi para mim como um choque eléctrico.Não estava preparada, imagine-se! Era algo inconcebível até há pouco adiar uma consulta até receber o ordenado/reforma...???
Só posso sentir que tive uma vida muito mimada e que a força das redes de amizade era bem maior do que eu julgava. E este extraordinário controlo dos fumadores (e eu não sou fumadora!!!) através do Boletim de Saúde dos filhos visando claramente uma maior economia da resposta veio chamar-me a atenção para a distância que me separa dos dias da minha infância.



Cereja

PS - Já tinha publicado este post quando li o desmentido do Ministério da Saúde. Não sei se foi excesso de zelo da jornalista, se o Ministério se explicou mal, se... Mas de qualquer modo ainda bem.

5 comentários:

cereja disse...

Não sei se o link entra aqui bem, mas é interessante ler o que diz o Eugénio Rosa

http://www.eugeniorosa.com/Sites/eugeniorosa.com/Documentos/2013/58-2013-snsf.pdf

Zorro disse...

Muito bom este teu post.
E fizeste bem em acrescentar aquele PS se é assim deve dizer-se. O que não invalida tudo o resto!

O artigo do Eugénio Rosa lê-se bem se clicarmos em cima e seguimos a indicação :))

Zorro disse...

(vou ler os outros posts; estiveste tanto tempo parada que pensei que tinhas fechado a loja..)

cereja disse...

Olá Zorro. Tinha sentido a tua falta, mas realmente o meu ritmo anda tão baixo que deixei de ter visitas. Bem feito para mim :(

Joaninha disse...

Olá Cereja! Estou um pouco como o Zorro :) com a tua paragem desabituei-me de passar por cá - vou ver o que entretanto perdi.
Este parece um post «à antiga», muito pessoal. E realmente é curioso com essas redes familiares funcionavam. Não ao nível que aqui contas mas também recordo uns apoios formidáveis que havia quando era pequena. Para já as avós que agora são substituídas por creches e infantários mas... não-é-a-mesma-coisa :(