Recebi, na ante-véspera do Natal, dois telefonemas seguidos de duas amigas.
Uma delas telefonou-me quando estava a lanchar, atendi quando ainda estava a engolir e desculpei-me disso. "A lanchar? -respondeu-me ela - Olha eu ainda nem tive tempo de comer!!!" o que me fez sentir um tanto envergonhada e comilona até ela se ter queixado numa voz agressiva que estava cansadíssima por ter estado a manhã toda no Toy's R Us para comprar a prenda da neta. Bom. Reconheço que não tenho grande paciência para esse tipo de queixas. O Natal não é uma festa volante, é sempre no dia 25 de Dezembro, qual a ideia de se esperar pela véspera para as compras necessárias?!... Só me apetecia dizer "Bem-feito!!!" É, pode haver um esquecimento, um imprevisto, mas não da neta ela até me explicou que era uma prenda específica... E também não foi o caso de estar à espera de receber o ordenado para a compra. Esta minha amiga teve um início de vida difícil e duro, mas agora vive com conforto. Reforma razoável sem ser de luxo mas é só para ela, além de ter uns bons tostões em conta a prazo. Claro que ela é que sabe da sua vida, mas olhando de longe não entendo que fale tantas vezes de cansaço porque tem uma empregada que vai semanalmente deixar-lhe a casa a brilhar e explicou-me que desta vez, mesmo com uma família muito pequena, mandou assar o peru fóra, as sobremesas também vêm de fóra, em casa só faz a sopa e decora a mesa - actividade que já começou de véspera. Está a apertar o cinto sem dúvida, há uns tempos vivia bem melhor e o futuro preocupa-a como é natural mas tem uma vida muito confortável. Cansada, parece-me a mim, só por complicar o que seria simples.
Quase de seguida ligou-me-me outra amiga, a explicar porque não me tinha falado na véspera, como estava combinado. Ela tem 2 empregos durante a semana e ainda faz umas horas noutro sítio ao sábado. O marido tem uma reforma de 400 € o filho, de trinta e tal anos, vive com eles e está desempregado sem direito a subsídio. Nesse dia teve de apanhar o comboio das 8 da manhã porque a partir dessa hora há greve e já não poderia ir trabalhar, e à volta esperou mais de uma hora na estação pelo fim da greve. Da estação a casa ainda é um bocado e ela vai carregada porque prefere fazer as compras num super que é um pouco mais barato apesar de mais longe. Ao chegar é a lida da casa, a que não fez de manhã, e cozinhar o jantar. O marido não mexe uma palha (não é 'de homem' essas coisas...) e o filho idem. Ela é uma pessoa com imenso carácter, inteligentíssima, sensível, mas anda demasiado cansada para se impor "aos homens" da casa que ainda consideram natural que ela se ocupe de tudo. Confidenciou-me "Ando tão cansada que nem sou capaz de ler. Pego num livro e adormeço no sofá" e muitas vezes me diz que nem quer pensar no que seria daquela família se ela desaparecesse, porque é o suporte de tudo.
Impressiona-me mais ainda porque era uma pessoa de uma enorme alegria, optimismo e boa disposição. Ainda há uma dúzia de anos era para mim uma referência de pessoa que sabia "descomplicar" a vida, tirar o melhor partido. Como é possível vê-la assim...?
.............
Quanto a mim estou mais ou menos no meio. Sou organizada, não me enfio num Centro Comercial na véspera de Natal, nem tenho capacidade económica de mandar vir a ceia já feita mas não preciso disso, até gosto de cozinhar. Não me cansa. E felizmente, também não preciso de trabalhar loucamente para sustentar a minha família, mesmo que tenha cortado todos os extras e alguns não-extras, até teria vergonha de me queixar de cansaço quando penso na minha amiga A**. Conclusão? Que a sociedade é o raio de uma grande mistura, que há gente boa, capaz, sensível, generosa, inteligente como as minhas duas amigas, mesmo que o contraste seja tão grande.
Gosto muito das duas.
Pé-de-Cereja